Ontem, a "doença de criança" fazia seu holocausto singular no sertão nordestino. Ainda hoje, bebês seguem o duro caminho do útero para a cova rasa. A dor do parto dá lugar à dor da partida, infinita.
As dores do parto doem menos quando nasce um anjo. Porque a dor após dar à luz é tão imensa que as contrações uterinas soariam cócegas. Mas é mais: um pedido para sair. E só após se descobre que era além: um apelo. A distância entre tempo e destino foi tão curta que Dilce não imaginava que a roupinha de bebê engomada e dobrada na bolsa a caminho da maternidade se faria mortalha horas depois.
Após cortar o sertão jaguaribano em ambulância sem maca, entre outras ausências, e ser recusada em duas cidades, incluindo a própria, Dilce teve o cordão umbilical cortado. Foi como quem solta um balão no céu em melancólica viagem.
Depois de brigar com Deus, sobre por que fez aquilo, Francedilza Silveira, a Dilce, encontrou como explicação: havia de ser. Na tradição cristã, lembram a ela, criança que morre é um anjo a mais a povoar os céus, chamado por Deus. Sem contestações. A equipe médica no parto e a sequência de pessoas que antes cruzara na peregrinação intermunicipal, incluindo o motorista - não podia ir mais rápido porque os quatro pneus estavam carecas e já arriscava a vida de todos - disseram-lhe que deveria dar graças a Deus por estar viva, não ter ido junto. Em meio à dor, ainda abortaram-lhe o desejo de, ao menos por um instante, ter asas.
Se...
Uma enfermeira, voz solitária que acompanhou aqueles sofrimentos finais de uma dor que estava só no começo, disse-lhe que se tivesse uma maca para viajar deitada, se houvesse equipe de saúde para além do motorista-salva-vidas, 'se' uma pequena série de necessidades óbvias no procedimento, "sua filha teria sobrevivido". Era o avesso de uma sentença.
A constatação só aumenta as dores de Dilce. Essa não aparece em ultrassom, tampouco resolve com analgésico. Não tem nome, nem fim. Ana Vitória chega em casa no colo do pai, embalada num caixão. E qualquer resposta para os 'ses' depois resta sepultada numa cova rasa. Mergulhados no 'se', e tentando nos aproximar das singularidades que envolvem a dor do parto e a dor do partir, viajamos pelo sertão do Ceará, encontrando histórias de pais e mães de anjos. Mais do que isso, dos pneus carecas e da maca da ambulância, dos hospitais que disseram "não" e "sim". Relatos apresentados, de hoje até sexta-feira, na série de reportagem "Parto dos Anjos" .
Investigamos e questionamos os tortuosos caminhos que, de alguma forma, contribuíram para as mortes. Até que somos surpreendidos com a sequência de óbitos em poucos dias numa mesma região, a do Sertão Central. Testemunhamos, de forma inesperada, o levantar da poeira nos enterros em cemitérios de anjinhos.
Em Santa Quitéria, Bruno da Silva, de 12 anos, enterra sua irmã enquanto os pais choram em casa; Maria Claudiana tem dois partos para o mesmo filho em Canindé de São Francisco. Em Quixeramobim, um pai tem na certidão de óbito a única declaração de que sua filha viveu. Outra mãe, Francisca Severina, ouviu da médica que "se soubesse" que o esposo trabalhava no mesmo hospital, tinha feito o parto que recusara duas vezes. Da mesma forma, não assinou o óbito.
Naquela terra de Antônio Conselheiro, o sertão virou mar de anjos, sendo as cruzes âncoras de vidas naufragadas. O conselho comum é "não vá atrás". Não questione médico, hospital. Não pergunte a Deus. Não trará seu filho de volta. Mesmo assim, Severina quer ir até o fim por justiça. Devolverem a dignidade que lhe arrancaram.
Enquanto isso, é dito a Dilce, em Jaguaretama, que não chore. As lágrimas molham as asas e impedem o anjinho de subir. Já com a certeza de que ele subiu, ela nos narra sua história desde a primeira dor, de Ana Vitória pedindo para brincar. Ainda não era aquela outra, pedindo para sair.
Acesse o hotsite da série Parto dos Anjos
Melquíades Júnior
Repórter.
Fonte: Diário do Nordeste
As dores do parto doem menos quando nasce um anjo. Porque a dor após dar à luz é tão imensa que as contrações uterinas soariam cócegas. Mas é mais: um pedido para sair. E só após se descobre que era além: um apelo. A distância entre tempo e destino foi tão curta que Dilce não imaginava que a roupinha de bebê engomada e dobrada na bolsa a caminho da maternidade se faria mortalha horas depois.
Após cortar o sertão jaguaribano em ambulância sem maca, entre outras ausências, e ser recusada em duas cidades, incluindo a própria, Dilce teve o cordão umbilical cortado. Foi como quem solta um balão no céu em melancólica viagem.
Depois de brigar com Deus, sobre por que fez aquilo, Francedilza Silveira, a Dilce, encontrou como explicação: havia de ser. Na tradição cristã, lembram a ela, criança que morre é um anjo a mais a povoar os céus, chamado por Deus. Sem contestações. A equipe médica no parto e a sequência de pessoas que antes cruzara na peregrinação intermunicipal, incluindo o motorista - não podia ir mais rápido porque os quatro pneus estavam carecas e já arriscava a vida de todos - disseram-lhe que deveria dar graças a Deus por estar viva, não ter ido junto. Em meio à dor, ainda abortaram-lhe o desejo de, ao menos por um instante, ter asas.
Se...
Uma enfermeira, voz solitária que acompanhou aqueles sofrimentos finais de uma dor que estava só no começo, disse-lhe que se tivesse uma maca para viajar deitada, se houvesse equipe de saúde para além do motorista-salva-vidas, 'se' uma pequena série de necessidades óbvias no procedimento, "sua filha teria sobrevivido". Era o avesso de uma sentença.
A constatação só aumenta as dores de Dilce. Essa não aparece em ultrassom, tampouco resolve com analgésico. Não tem nome, nem fim. Ana Vitória chega em casa no colo do pai, embalada num caixão. E qualquer resposta para os 'ses' depois resta sepultada numa cova rasa. Mergulhados no 'se', e tentando nos aproximar das singularidades que envolvem a dor do parto e a dor do partir, viajamos pelo sertão do Ceará, encontrando histórias de pais e mães de anjos. Mais do que isso, dos pneus carecas e da maca da ambulância, dos hospitais que disseram "não" e "sim". Relatos apresentados, de hoje até sexta-feira, na série de reportagem "Parto dos Anjos" .
Investigamos e questionamos os tortuosos caminhos que, de alguma forma, contribuíram para as mortes. Até que somos surpreendidos com a sequência de óbitos em poucos dias numa mesma região, a do Sertão Central. Testemunhamos, de forma inesperada, o levantar da poeira nos enterros em cemitérios de anjinhos.
Em Santa Quitéria, Bruno da Silva, de 12 anos, enterra sua irmã enquanto os pais choram em casa; Maria Claudiana tem dois partos para o mesmo filho em Canindé de São Francisco. Em Quixeramobim, um pai tem na certidão de óbito a única declaração de que sua filha viveu. Outra mãe, Francisca Severina, ouviu da médica que "se soubesse" que o esposo trabalhava no mesmo hospital, tinha feito o parto que recusara duas vezes. Da mesma forma, não assinou o óbito.
Naquela terra de Antônio Conselheiro, o sertão virou mar de anjos, sendo as cruzes âncoras de vidas naufragadas. O conselho comum é "não vá atrás". Não questione médico, hospital. Não pergunte a Deus. Não trará seu filho de volta. Mesmo assim, Severina quer ir até o fim por justiça. Devolverem a dignidade que lhe arrancaram.
Enquanto isso, é dito a Dilce, em Jaguaretama, que não chore. As lágrimas molham as asas e impedem o anjinho de subir. Já com a certeza de que ele subiu, ela nos narra sua história desde a primeira dor, de Ana Vitória pedindo para brincar. Ainda não era aquela outra, pedindo para sair.
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Melquíades Júnior
Repórter.
Fonte: Diário do Nordeste