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O juiz da Vara de Execuções disse que o Sistema Socieducacional do Ceará está diante de uma tragédia anunciada

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Uma média de 15 a 20 adolescentes participam de audiências na 5ª Vara, por dia. Há dois anos a média era de cinco a oito garotos, segundo o Juizado
FOTO: KIKO SILVA
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O magistrado diz que a reincidência dos adolescentes infratores em delitos é maior que 90%
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Conforme a STDS, os internos têm atividades escolares, de esporte e lazer todo dia
FOTO: NATINHO RODRIGUES
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A falta de políticas de ressocialização são um problema grave dentro dos Centros. Nem mesmo as salas de aula funcionam bem, para a estudiosa
FOTO: KID JÚNIOR
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O Centro do Canindezinho está em construção há quatro anos. A obra foi iniciada em 2011 e deveria ser concluída no mesmo ano
FOTO: HELENE SANTOS
Conduzindo um garoto algemado rumo ao Centro Educacional, após audiência na 5ª Vara da Infância e Juventude, o PM que segurava o infrator pelo braço diz desanimado: "Não tem mais jeito. O que era ruim está cada vez pior. Esse aqui está sendo internado porque já matou três. Quer dizer, três que o juiz sabe, mas ele confessa dez. Os outros estão indo embora, porque não tem onde colocar. Mais de 15 saíram daqui rindo da cara das pessoas que roubaram ou mataram", desabafou o militar, que pediu para não ser identificado.
O juiz Manuel Clístenes de Façanha e Gonçalves, titular da 5ª Vara, não diz que está deixando de internar adolescentes infratores por conta da superlotação, mas confirma o que o policial denunciou: o Sistema Socioeducacional do Ceará entrou em colapso. A falência, conforme Clístenes, se deu progressivamente, após sucessivas tentativas de alertas ao Governo sobre os problemas que os Centros Educacionais estavam enfrentando.
As três unidades que recebiam a maior demanda - Patativa do Passaré, Dom Bosco e Dom Aloísio Lorscheider - estão interditadas, por questões estruturais e administrativas. Os Centros que sobraram recebem, atualmente, cerca de 1.000 adolescentes em conflito com a lei.
Juntos, os Centros São Miguel, São Francisco e Passaré, ambos em Fortaleza, abrigam 653 infratores. Cada um destes equipamentos tem capacidade para apenas 60 pessoas. "Três Centros foram interditados por decisão de outro magistrado, porque não funcionava a contento. O problema é que todos os internos foram levados para os que estão disponíveis. O São Miguel e São Francisco são vizinhos e somam quase 500 internos. O risco é que entrem em ebulição simultaneamente. Estamos diante de uma tragédia anunciada há três anos. A superlotação aconteceu gradativamente, até chegar a este recorde, em que dois Centros que deveriam ter 120 adolescentes, estão com 460. Quase o quádruplo da capacidade", afirmou Clístenes.
O juiz diz que não há mais medidas paliativas que possam ser tomadas e que a Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) precisa adotar medidas que resolvam os problemas. "A STDS perdeu completamente o controle da situação. Nós, enquanto Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, já fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. Realizamos um mutirão no fim de 2014, mas foi uma medida paliativa. Deu um prazo para que o sistema suspirasse durante uns três meses, mas o sufoco chegou de novo, muito maior".
Delitos gravíssimos
O magistrado afirma que a gravidade dos delitos praticados pelos adolescentes tem aumentado e isto ocasiona cada vez mais internações. Somado a isto, a reincidência dos infratores chega a 90%, conforme dados da secretaria do Juizado. "Os atos infracionais estão piorando terrivelmente. A quantidade de latrocínios e homicídios cometidos por adolescentes é alarmante. O tráfico, que é um delito gravíssimo, é a grande maioria dos procedimentos que recebemos aqui. São delitos que não podem passar despercebidos. Precisamos que o Poder Público intervenha com mais força nesta situação porque, sinceramente, não vejo por parte do Estado uma preocupação com a situação, proporcional ao tamanho do problema", considera.
Para Gonçalves, a situação do Sistema Socioeducacional do Ceará precisa ser revista, antes que um desastre ocorra. "A situação é de extrema gravidade. Há um risco efetivo à integridade dos adolescentes e dos funcionários dos Centros. A qualquer hora pode haver um desastre. Ou o Estado reforma e amplia essa estrutura, ou estamos caminhando para muitas outras rebeliões, fugas, motins e incidentes que tendem a ficar mais sérios. Estamos mantendo os adolescentes todos juntos e muitos deles são de facções rivais fora das unidades. Podemos ter perdas humanas nesta confusão toda".
O número de adolescentes que deu entrada no Sistema Socieducacional, em 2014, é alto. Foram 1.078 garotos admitidos em medidas de Liberdade Assistida (L.A.), que são indicadas para quem comete delitos que não são considerados graves. No mesmo período, 629 foram readmitidos na mesma medida.
Segundo Clístenes, o número de reincidência na L.A. É menor que a admissão, porque os adolescentes que voltam ao sistema, geralmente já estão envolvidos com atos infracionais mais graves e passam a cumprir medidas mais duras, como a internação.
"É lamentável a situação em que eles estão. Geralmente são usuários de drogas, fazem parte de núcleos familiares desestruturados, vivem em lugares em que suas necessidades básicas não são atendidas. É preciso que alguém olhe por estes meninos, que não têm opções para suas vidas. Não é à toa que recebemos uma média de 15 a 20 adolescentes por dia".
STDS está agindo pelas melhorias
A Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social (STDS) informou, por meio de nota, que está efetivando medidas para melhorar o atendimento aos infratores. A Instituição diz que, para evitar a reincidência e a superlotação está solucionando falhas dos Centros Educacionais, no tocante à infraestrutura, segurança, capacitação e seleção de instrutores e capacitação e educação dos internos.
Dentre as medidas previstas pela Secretaria está a construção de três novas unidades em Fortaleza, Juazeiro do Norte e Sobral. Sobre os atrasos para a entrega do Centro do Canindezinho, a STDS afirmou que 86% da obra já foram realizados e a conclusão dos trabalhos está prevista para este semestre. Ainda conforme a Instituição, duas unidades em Sobral e Juazeiro do Norte estão sendo construídas e devem ser entregues até dezembro deste ano.
Na Capital, as unidades interditadas por questões estruturais estão sendo reformadas. Conforme a nota, o Patativa do Assaré (Cepa), Cardeal Aloísio Lorscheider (Cecal) e Dom Bosco passam por um projeto para ampliar o número de dependências e abrir novas vagas nas três unidades.
De acordo com a STDS, a lotação atual no São Miguel é temporária e decorrente da transferência dos adolescentes das três unidades em reforma.
Medidas Jurídicas
A Secretaria diz que estão havendo articulações para a regionalização do atendimento e o fortalecimentos das Medidas em Meio Aberto. "O atendimento em meio aberto deve ser priorizado e de excelência, evitando assim o ingresso ou regresso de adolescentes em conflito com a lei para unidades privativas", afirmou a coordenadora da Proteção Social Especial da STDS, Mariana Abreu.
A Secretaria informa que há esforços para que Varas comuns sejam transformadas em Varas da Infância e Juventude, nos municípios com mais de 100 mil habitantes. Além disto, negocia com a Secretaria de Segurança Pública a implantação da guarda patrimonial na área externa das unidades.
Conforme a STDS, o Sistema Socioeducativo conta com um processo de recrutamento de novos instrutores para os Centros, para a qual será aberta uma seleção para avaliação do perfil social, idade, escolaridade e idoneidade moral dos candidatos. A Secretaria diz ainda que os internos participam diariamente de atividades escolares, de esporte e lazer, intercaladas com cursos de capacitação para o mercado de trabalho.
Ressocialização e atenção psicossocial estão abaladas
A superlotação dos Centros Educacionais desencadeia outras questões graves, no entendimento da pesquisadora do Núcleo de Pesquisas Sociais (Nupes) da Universidade Estadual do Ceará (Uece), professora Andrea Luz. Segundo ela, as complicações são antigas e só se agravam. A falta de políticas de ressocialização e o comprometimento do atendimento aos infratores pelos núcleos psicossociais, têm sido uma violação dos direitos deles, segundo a estudiosa. "Ainda em 2009, realizamos uma pesquisa e denunciamos a superlotação. As consequências chegaram de diversas formas, porque vale lembrar que os adolescentes que estão internados precisam ter seus direitos mantidos. Costuma-se olhar para o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) somente no que trata da socioeducação, mas os direitos previstos lá são para todas as crianças e adolescentes, mesmo que tenham cometido atos infracionais", frisa a professora.
A pesquisadora do Nupes diz que a demanda altíssima nos Centros atinge às outras instituições e aos profissionais que estão ligados ao funcionamento das unidades. "Os instrutores, psicólogos e assistentes sociais não conseguem fazer seu trabalho bem feito. Os adolescentes recebem atendimento quando entram na unidade, mas o acompanhamento psicossocial deles fica prejudicado, porque muita gente entra todos os dias. Da mesma forma, os juízes, promotores e defensores públicos das Varas da Infância e Juventude não dão conta das demandas processuais que surgem. Se temos uma Justiça que não caminha junto com a demanda, está aí mais uma violação de direitos dos internos", afirma Luz.
Andrea Luz acredita que a prevenção dos delitos e a ressocialização dos internos são a solução. "A internação acaba sendo a principal indicação da Justiça, mesmo quando não é necessária. A situação atual dos Centros não permite que seja feito um trabalho mínimo de ressocialização e os adolescentes acabam reincidindo. A prevenção é decisiva no enfrentamento à violência praticada pelos adolescentes. É preciso que eles tenham uma escola atrativa, um espaço onde possam desenvolver suas habilidades, onde tenham lazer. Se isto não acontecer vão continuar nas drogas".
Incidentes seriam fruto da lotação
Somente na última semana foram registradas três fugas e uma paralisação de funcionários nos Centros Educacionais de Fortaleza. O primeiro incidente se deu domingo, dia 22, quando 11 infratores escaparam do São Miguel e feriram um orientador.
Durante a manhã do dia 26, os orientadores do Centro São Miguel paralisaram as atividades por algumas horas reclamando da superlotação e dos riscos que enfrentam no expediente. Ainda no dia 26, oito internos do Patativa do Assaré, fugiram. Quatro deles foram recapturados em seguida pela PM.
Na manhã do dia 27, nova fuga no Patativa. Onze internos fugiram e nove foram recapturados. "Cada orientador cuida de cerca de 20 menores. É impossível conseguir controlá-los. Só sabe o que acontece lá dentro quem convive. Aquilo é um inferno", declarou um orientador, que preferiu não se identificar.
O funcionário conta que não só os orientadores, mas as pessoas que trabalham na limpeza e na cozinha das unidades que estão pensando em sair dos empregos. "O risco é constante. A gente fica lá porque é o jeito, mas todo mundo morre de medo. Eles nos ameaçam dizendo que vão pegar nossas famílias", declarou.
Depósito
O juiz da Vara de Execução da Infância e Juventude, Clístenes Gonçalves, disse que participa anualmente de reuniões do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a Infância e Juventude e a situação do Ceará é a pior do Brasil, conforme o que é exposto nos encontros. "Os Centros Educacionais viraram um depósito, em que adolescentes são amontoados em espaços como salas de aula e de oficinas, transformados em dormitórios improvisados", declarou.
Ainda segundo ele, com a interdição de três unidades, os critérios que eram usados para abrigar os infratores não são mais respeitados. "Temos pessoas de 12 a 21 anos mantidas juntas, cumprindo medidas socioeducativas diferentes. Isto está acontecendo à revelia da lei".
O magistrado acredita que a entrega do Centro do Canindezinho, prevista para abril, pode amenizar a superlotação. "Desde que o sistema começou a desandar, há três anos, não foi criada um vaga, sequer, na Capital".
A construção do Centro do Canindezinho foi iniciada no começo de 2011. A entrega era prevista para o mesmo ano, mas a obra segue em andamento. A última ordem de serviço para obras complementares foi assinada em novembro de 2014 e deveria ser cumprida em 150 dias.
Márcia Feitosa
Repórter

Fonte: Diário do Nordeste

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